O que você está pintando em Marselha?

Anonim

Basta olhar para a previsão do Google quando você digita Marselha para saber o que as pessoas estão procurando: “Marsella La Casa de Papel”, pelo nome de um dos personagens da famosa série, e “Marsella perigosa”, não exatamente pelos roubos da ficção espanhola, mas por aquela fama de pulgas más que arrasta a cidade que aqui nos interessa. Fama merecida, seria absurdo não se render às provas porque vamos ver, quem vai percebe em questão de nanossegundos que isso não é La La Land. Mas em sua defesa diremos que existem muitos destinos arriscados e que é fundamental –sempre– que como viajantes saibamos para onde vamos e como. Nada tem que acontecer com você, como em qualquer outra grande cidade européia, se você se mover por bairros seguros e não tentar o destino. E outra coisa: Marselha é legal. Muito.

Porto Velho de Miramar.

Miramar, Porto Velho.

VIEUX PORT: O NÚCLEO, O COMEÇO

Tão antigo é o Vieux Port (“porto velho”) que sua origem remonta ao século XV, quando sua entrada foi bloqueada por uma enorme cadeia que protegia a cidade. Mas não procure a cadeia, pois está localizada na Catedral de Valência como lembrança da perícia do rei Afonso V de Aragão, autor do Saque de Marselha em 1423, que causou enormes danos. Porque sim, a história da segunda maior cidade da França é cheia de altos e baixos, os mesmos que forjaram seu caráter poderoso. Em 1720, a Grande Peste causou mais de cem mil mortes. Pouco depois, em 1792, seus habitantes abraçaram a Revolução com tanto fervor que se dirigiram a Paris ao ritmo de um canto –A marselha, isto é–, que hoje é o hino nacional. Sua glória veio no século 19 graças à expansão do comércio e a chegada de inúmeras fábricas, mas a Segunda Guerra Mundial dinamitou não apenas anos de prosperidade, mas também grande parte da cidade velha por causa de um projeto de limpeza em massa. Porém, Marselha sempre se levanta, mesmo no outro dia em que Macron anunciou uma injeção de 1,5 bilhão de euros para reabilitar prédios, modernizar o transporte público e atualizar escolas. Tudo isso acontece enquanto no Vieux Port tudo acontece: seu mercado de pescadores que canta o frescor do dia, o vai e vem de barcos que oferecem passeios de Les Calanques - um parque natural que dá à paisagem uma beleza colossal entre ilhotas, enseadas e penhascos–, as esplanadas apinhadas onde o cheiro da sopa bouillabaisse e os locais procuram o raio de sol... Vieux Port é, em suma, o ponto de partida para as partes mais atraentes da cidade.

Le Panier.

Le Panier.

LE PANIER: BOÊMIA E SABÃO.

As pessoas de Marselha adoram Le Panier, mas também dizem que Le Panier não é mais o que costumava ser: o vibrante bairro de artistas e boêmios já se rendeu aos encantos da gentrificação e do turismo, por isso proliferam cada vez mais butiques recordações –e sabonetes, sabonetes de Marselha por toda parte– em detrimento de almonas, brocantes e baretos. Nada que não aconteça em nenhum outro destino europeu. Não há dúvida de seu charme, propiciado por um diabólico ziguezague de becos, escadarias e prédios empilhados no que se presume ser o bairro mais antigo da cidade. Não deixe de parar na Chez Etienne, que também detém o título de pizzaria mais antiga de Marselha, ou tomar um sorvete na Vanille Noire. Tome nota também de um segredo vazado por uma Marselhesa (obrigado, Camille), o restaurante japonês Tako San. Compre sabão, é claro, e desça para o Vieux Port novamente.

NOAILLES: O HARDWARE É CHIQUE.

De Noailles você vai adorar ir de uma butique Isabel Marant a uma verdadeira loja de artesanato africano em um piscar de olhos. Da azáfama do mercado capuchinho, o emocionante ir e vir de etnias e culturas entre caixas de frutas e potes de especiarias, na vanguarda do espaços multimarcas como allanjoseph, com Comme des Garçons, Officine Generale e Maison Margiela entre suas firmas. Maison Imperador, a loja de ferragens mais antiga da França, hoje também especializada em produtos para cozinha e casa, além de uma infinidade de “tranqueiras” que vão fazer você se apaixonar, é outro dos motivos que convidam você a prolongar seu passeio por este bairro, ora tão elegante, ora tão (bem) verdura. A partir daqui é fácil chegar ao edifício da Ópera e, novamente, às fileiras de terraços – como os do Course Honoré d'Estienne d'Orves, onde está localizado o precioso espaço da empresa Inês B., com exposições temporárias– em que os aromas de receitas clássicas francesas se misturam com cozinhas que soariam exóticas em outro lugar, mas não aqui, aqui dão sentido ao futuro de Marselha. Experimente a cozinha tunisina de Chez Yassine e peça o café em Profundo, o melhor torrador de Marselha e epicentro da modernidade local, antes de seguir o rota de compras entre a rue Grignan e a rue Paradis. Se quiser terminar o dia mimando-se, entra em A Bastide des Bains, um sofisticado hammam com linha própria de cosméticos.

Corte Julien.

Corte Julien.

COURS JULIEN: AQUI VOCÊ PINTA.

O bairro que todo mundo fala, o bairro que todo mundo frequenta. Eclética, multirracial, sempre animada e cheia de grafites por todos os lados. Não se sabe se é arte urbana – sim – ou, às vezes, uma certa vontade de iluminar com sprays exemplos maravilhosos, mas negligenciados, da arquitetura do século XIX. Em Cours Julien tudo se estrutura em torno do parque ao qual a coisa dele, o fotogênico, é acessar pelas Escaliers du Cours Julien. Você não queria grafite? Bem, tome. No andar de cima, os terraços vão se sucedendo até desembocar em becos que o recebem com letreiros de néon: amor, desejo, coração... palavras bonitas para cruzar o limiar da Marselha mais moderna, algo como uma pequena Belleville parisiense. lugares como Le Fuzz, wine bar, cervejas artesanais e vinil, convivem com Agente de apostas, uma livraria romântica de segunda mão, Melanina S lilou, tanto roupas vintage, ou o fenomenal clube Le Petit Pernod, em cuja esplanada os paroquianos prolongam o seu domingo entre cervejas e pratos de polvo e panisses do Chez Gilda. Ah, as panelas. Emblema da cozinha de rua de Marselha, têm a sua origem no Vieux Port, como tudo o resto, onde os vendedores ambulantes ofereciam estas panquecas de farinha de grão de bico baratas e saborosas. Poucas cidades podem se gabar de uma sopa (a bouillabaisse, pouco mais a acrescentar) e um pão que fazem parte da imaginação do paladar do mundo. Também é justo reconhecer que a influência italiana aqui é enorme, outra prova disso é A Cantina, um dos restaurantes badalados do bairro e cujo jardim interior está sempre cheio. Igual aos assentos A Baleia, um bistrô com cinema, ou o contrário, onde os cineastas franceses dominam e aquela atmosfera neo nouvelle vague sempre tão pitoresca no país vizinho.

Círculo des Nageurs.

Círculo des Nageurs.

PHARO: UM BANHEIRO BRUTAL, BRUTALISTA.

Nessas datas, o banho pode ser um ato heróico demais, mas não subestime o bom tempo em Marselha. Nem a possibilidade de acesso à piscina interior do Cercle des Nageurs , um histórico iate clube localizado no bairro de Pharo, onde treinam medalhistas olímpicos e a burguesia de Marselha, criando estampas dignas de Slim Aarons. A massa de concreto ao nível do mar rivaliza com o estilo do Segundo Império do Palais du Pharo, antiga residência de verão de Napoleão III, e com o forte de San Nicolás, do século XVII, para que não esqueçamos que quem teve, manteve. Porque Sem Marselha, tão colorida e colorida ao mesmo tempo, a França teria menos história, menos sopa, menos sabão. E o que você está fazendo saindo daqui sem lembrança.

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Este relatório foi publicado no número 148 da revista Condé Nast Traveler (outono de 2021). Assine a edição impressa (€18,00, assinatura anual, através do telefone 902 53 55 57 ou do nosso site). A edição de abril da Condé Nast Traveler está disponível em sua versão digital para curtir no seu dispositivo preferido

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