Era uma vez o Grand Tour da Itália (ou seja, o prelúdio do 'turismo')

Anonim

Houve um tempo em Veneza em que as crianças se banhavam no canal e os artistas...

Houve um tempo em Veneza em que as crianças se banhavam no canal e os artistas apreciavam exclusivamente sua arquitetura.

Jovens estudantes britânicos - aristocratas ou ricos -, artistas ou cientistas do século XVIII embarcaram no que veio a ser chamado de Grand Tour, que pode durar meses ou anos . Alguns o fizeram com a intenção de completar a educação, outros em busca de conhecimento e aventura.

Estudantes recém-saídos de Oxford, Cambridge... foram escoltados por um clérigo, um militar aposentado, um conhecido da família... que atuou como conselheiro, administrador, educador e vigia. Cadernos de viagem para anotar suas experiências e aprendizados, livros didáticos, roupas para todas as ocasiões, lençóis e toalhas, o baú de ferro para guardar dinheiro e salvo-condutos e uma pequena arma, por precaução, enchiam seus baús.

Muitos artistas aderiram a este ritual, capturando suas anedotas de viagem em seus escritos. Foi o caso do casamento de Percy e Mary Shelley, autor do polêmico Frankenstein, e do poeta John Keats, que buscou no clima e na beleza romanos a cura para sua tuberculose. O edifício onde viveu e morreu o jovem poeta (aos 25 anos), no número 26 da escadaria da Plaza de España, hoje abriga um museu em homenagem aos poetas românticos ingleses, entre eles Lord Byron e o casal Shelley.

O museu secreto Keats Shelley House está localizado em um local não tão secreto.

O museu secreto Keats-Shelley House está localizado em um local não tão secreto.

ROMA, INÍCIO E FIM DA VIAGEM

Influenciados pela literatura ficcional de Laurence Sterne em Sentimental Journey, Goethe's Journey to Italy e pelo pai da arqueologia e da história da arte, Joham Joachim Winckelmann, os futuros líderes do Império Britânico encontraram na Itália, especialmente em Roma, o compêndio de sua cultura ambições apenas caminhando por aquelas ruas onde coexistem ruínas, renascimento, barroco e vida cotidiana genuinamente.

Uma visita incontornável para os jovens com aspirações artísticas foi Roma, seguindo os critérios segundo os quais era preciso observar, descobrir, viver... Ou seja, a cidade que deu origem a tanta beleza, suposta o ápice da educação acadêmica.

Joshua Reynolds resume bem em seu livro de 1778 Quinze Discursos: “Raphael não estudou em uma Academia, mas em toda Roma. As obras de Michelangelo, especialmente, foram sua melhor escola”.

A escola de Rafael foram as obras de Michelangelo em Roma.

A escola de Rafael foram as obras de Michelangelo em Roma.

Cartas de recomendação para artistas eram obrigatórias. Desta forma era mais fácil para o jovem entrar na sociedade italiana e aprenda em primeira mão os segredos da arte. Houve mesmo quem encomendou a estes artistas os seus retratos com um fundo de ruínas, monumentos... que testemunhavam a sua estadia italiana.

Ponto de encontro desses primeiros turistas foi o Café Greco na Via Di Condotti, que durante seus 250 anos Serviu café a pessoas da categoria de Casanova, Andersen -que morava no andar de cima-, Goethe, Stendhal... Também ao comboio de dignitários poloneses – do pai da poesia polonesa, Adam Mickiewic, ao Prêmio Nobel Henryk Sienkiewiz – e aos muitos tagarelas que, embora antes de encharcarem a caneta no tinteiro, hoje digitam no laptop. Todos eles deram seus primeiros passos literários no lendário café.

Muitas cartas se juntaram no Café Greco na Via Di Condotti.

Muitas cartas se juntaram no Café Greco na Via Di Condotti.

POMPÉIA, RECÉM DESCOBERTA

A visita a Nápoles foi cosmopolita e divertida. A maior cidade da Itália naquela época dividida em estados, a real Nápoles, bela e florescente, sob a proteção ou desamparo do Vesúvio. Tanto que o grande presente para quem percorreu a península italiana como parte de sua formação foi Nápoles. Lá, seu tutor evaporou para deixar o aluno desfrutar de sua liberdade.

A recente descoberta, em meados do século XVIII, de Pompeia e Herculano, as cidades soterradas pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., e as escavações promovidas pelo reinante Carlos VII de Nápoles, III de Espanha, foram motivo de peregrinação a os componentes do Grand Tour que voltaram para casa com baús cheios de afrescos, mosaicos e pedras para encher os antiquários e prateleiras particulares de Londres.

O fórum de Pompeia com o Vesúvio ao fundo.

O fórum de Pompeia com o Vesúvio ao fundo.

A SENSUALIDADE DA TOSCANA

Siena, de cuja terra é extraído o pigmento ocre homônimo usado na pintura artística desde tempos imemoriais, foi destino obrigatório para aquela expedição em busca de arte. Muitos deles fizeram sua visita coincidir com a lendária corrida de cavalos de El Palio.

Entre Siena e Florença, em plena exuberância toscana, erguem-se as torres de San Gimignano. O enclave etrusco –perfeita paragem e pousada na peregrinação a Roma– recebeu pessoas ilustres como Dante Alighieri (quando era embaixador da Liga Guelfa na Toscana) e foi, juntamente com Florença e Siena, um destino incontornável para o Grand Tour.

Até 15 das 72 torres podem ser vistas à distância, pioneiros dos arranha-céus, que foram construídos por famílias ricas no século 13, competiam em altura como símbolo de poder.

Segundo a Unesco, em Florença é o lar da maior concentração de arte internacionalmente famosa do mundo. Mais de um componente do Grand Tour sofreu ou saboreou a síndrome que Stendhal tornou moda em seu livro Nápoles e Florença: Viagem de Milão a Reggio, enquanto contemplava a Basílica da Santa Cruz, quando a beleza dói, após o acúmulo de prazer artístico que Florença implica.

Florence dói de tanta beleza.

Florence dói de tanta beleza.

O VENETO, NATUREZA E ARTE

A bela, única, incomparável Veneza, a cereja do bolo da peregrinação britânica que procurou se perder entre seus canais admirando aquela enorme mansalva de estilos arquitetônicos bem descritos por John Ruskin em seu livro Pedras de Veneza de 1853.

contemplar o obras de Ticiano, Tintoretto, Veronese e adquirir alguns vedute (pintura) sobre as vistas urbanas do Canal Giovanni Antonio, Canaletto, tão admirado pelos componentes do Grand Tour que conseguiram transferi-lo para a Grã-Bretanha em 1746, onde se estabeleceu por nove anos.

A cidade do amor foi imortalizada por Shakespeare graças ao amor impossível de Julieta Capuleti e Romeo Montague. Uma história infeliz que Luigi del Porte havia escrito no século 16, antes de chegar à pena do dramaturgo inglês. A jovem aristocracia inglesa viajou para a cidade atraída pelo famoso romance.

John Ruskin, em seu livro Verona and Other Readings (1857), fala de a cidade de Veneto como seu lugar favorito na Itália, aconselhando seus amigos e leitores a dedicar tempo e carinho a ele. Segundo suas avaliações, sua localização às margens do rio Adige, as igrejas góticas, os espetaculares túmulos medievais da nobre família dos Scaligeri, o Anfiteatro Romano da Arena e o Fórum Romano (hoje Plaza de las Hierbas) representam um verdadeiro tesouro.

Veneza hoje continua a atrair com seu romantismo.

Veneza, até hoje, continua a atrair com seu romantismo.

MILÃO, ATÉ O ÚLTIMO...

Figuras ilustres como Leonardo da Vinci, Alessandro e Petro Verri, frequentadores do café literário Greco e fundadores do influente jornal II Caffè, Giuseppe Verdi e muitos outros, eles viveram e criaram na cidade hospitaleira e de mente aberta de Milão do século 18, quando os ilhéus anglo-saxões a visitavam por estar em dia, especialmente quando se tratava de boas roupas.

Nesta cidade foram forjados os primeiros focos do nacionalismo italiano e, embora mais tarde Florença e depois Roma tenham sido as capitais do novo estado, Milão sempre foi considerada a cidade capital econômica da Itália e capital mundial da moda.

Miln exala estilo e moda de todos os lados.

Milão exala estilo e moda de todos os lados.

TURIM, A CAPITAL DO PIEMONTE

Depois de uma longa e às vezes dolorosa e fria viagem pelos Alpes, apareceu Turim, e com ela o calor e o sol da Itália que tanto desejavam ver. Avenidas largas, cafés, vida de rua. Lá eles aprenderiam a dançar, a se vestir, a viver em sociedade, comportar-se como um cavalheiro.

A ópera El Nuevo Teatro Regio seria mais um incentivo, esperando por eles do outro lado dos Alpes.

Os cafés foram e ainda são a artéria vital de Turim regida por aqueles deliciosos ambíguos situados entre as muitas arcadas da cidade, onde se serve a apericena (lanche e jantar) e uma Bicerin, a bebida tradicional típica de Turim, à base de café, chocolate e creme.

A arquitetura de Turim esconde deliciosos cafés onde você pode desfrutar de sua agitada vida social.

A arquitetura de Turim esconde deliciosos cafés onde você pode desfrutar de sua agitada vida social.

DE VOLTA PARA CASA

cirurgião e escritor escocês Tobias Smollett introduziu os ingleses na região da Ligúria em seus Cadernos de Viagem para a França e a Itália.

A esplêndida natureza do mar e das montanhas da Ligúria - juntamente com sua cultura e tradições lendárias - foi fonte de inspiração para muitos, incluindo D.H Lawrence, autor de Lady Chatterly's Lover. No entanto, Tobias Smollett escolheu viver e morrer na cidade portuária de Livorno, declarado porto franco desde os Médici. Ali alguns dos jovens aristocratas embarcavam para casa, trazendo consigo caixotes cheios de sedas, mármores, livros e obras de arte.

Livorno, famosa por ser uma cidade cosmopolita em que conviviam pacificamente diversas comunidades, tornou-se o ponto de chegada preferido dos viajantes americanos.

Em Livorno costumava terminar a grande rota pela Itália.

Em Livorno costumava terminar a grande rota pela Itália.

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