Cidades feministas: rumo a um futuro sustentável e inclusivo

Anonim

cidades feministas

Revisamos as contribuições femininas na história do planejamento urbano.

No mundo pré-COVID, o turismo urbano representou 45% das viagens internacionais e, embora agora nosso interesse por viagens esteja mais voltado para destinos rurais e de natureza, Não devemos esquecer que a cidade é, em sua teoria e origem, um marco da humanidade: ela nos permitiu viver em comunidade, desfrutar de instalações de lazer e saúde pública, educação e transporte.

“Há 50 anos, uma alta porcentagem de casas no centro de Madri não tinha banheiro: eles compartilhavam um localizado no final do corredor. Os bairros não tinham postos de saúde, nem bibliotecas, nem piscinas municipais, nem muitos outros equipamentos que tomamos como garantidos hoje. Nunca tivemos tanto bem-estar, mas ainda há muito a melhorar”, diz Inés Sánchez de Madariaga, arquiteta e urbanista.

Principalmente do ponto de vista de gênero. "As cidades foram projetadas para um homem branco que viaja de carro", diz Blanca Valdivia, integrante do Punt 6, grupo que defende o urbanismo feminista, cujo objetivo é criar cidades diversas e inclusivas que respondam às necessidades de todas as pessoas. Um fenômeno com detratores e seguidores e raízes profundas.

Durante séculos, mulheres arquitetas, urbanistas e ativistas contribuíram com propostas para melhorar o mundo. Há as Beguinas, uma associação de mulheres cristãs que na Flandres do século XIII inventaram uma alternativa ao casamento e ao convento com suas comunas, ou Cristina de Pizán, que reivindicou em La Ciudad de las damas (1405) uma cidade onde as mulheres se sentiam seguras e eles estavam livres.

Ou Jane Jacobs (1916-2016), talvez a teórica que mais influenciou a forma de analisar os fenômenos urbanos nas cidades contemporâneas. Suas ideias, ridicularizadas na década de 1960 por tecnocratas, estão sendo revividas hoje. O ativista americano focou nas pessoas e não nos edifícios, optando pelo uso misto, bottom-up (estratégia bottom-up), desobediência civil e local; abordagens defendidas pelo urbanismo feminista. A cidade inspirada em Le Corbusier com zonas de uso segregado – empresas de um lado, residências do outro – falha. Muitos dos gigantescos edifícios residenciais tornaram-se focos de drogas, pobreza, crime e violência e foram demolidos nos anos noventa.

cidades feministas

O projeto Kitchenless estuda estruturas de cooperação de mulheres como esta no México.

A lista de referências femininas é longa: a ativista romana Hortensia (século I a.C.), as arquitetas Eileen Gray, Charlotte Perriand e Lily Reich, o livro branco sobre as mulheres nas cidades de Anna Bofill… “Sem o reconhecimento de suas contribuições, não avançaremos. Cada nova geração tem que lutar novamente para abrir caminho por causa do apagamento de seus antecessores da história. Hoje tecer uma rede global de conhecimento entre as mulheres é mais fácil graças à mídia e à internet”, diz. Zaida Muxí, arquiteta médica e autora de Mulheres, casas e cidades.

Uma visão compartilhada por Dafne Saldaña, arquiteta e urbanista e membro da Equal Saree: “A desigualdade nas cidades se deve ao fato de que desde a ágora grega fomos excluídos dos espaços onde as decisões são tomadas. O urbanismo é patriarcal e hierárquico, e os departamentos de planejamento urbano continuam sendo masculinizados”. Também é hermético: “Especialistas de outras disciplinas como a antropologia ou as ciências sociais ou ambientais não foram ouvidos”, Valdivia lamenta.

Baixa percepção de segurança; gentrificação; altos níveis de poluição e ruído e falta de áreas verdes, parques, bancos para sentar, sombras e comércios próximos... “Não existe uma receita única para esses problemas. O urbanismo institucional tende a simplificar e projetar para um único tipo de pessoa. Defendemos o reconhecimento da complexidade e diversidade das necessidades dos moradores”, reconhece Saldaña. Para humanizar as cidades, é preciso contar com a opinião dos cidadãos. "A participação não é uma pesquisa ou uma lista de sábios feita online", esclarece Valdivia.

Coletivos como Punt 6 e Equal Saree saem às ruas com grupos de vizinhos para auditar os elementos urbanos e sociais, são as chamadas marchas exploratórias. “Essa ferramenta, nascida nos anos 80 no Canadá, nos permite entender como as cidades funcionam e projetá-las de dentro. É uma experiência de sororidade: passar por espaços que geram insegurança à noite empodera”, pensa Saldana.

cidades feministas

Capa de 'Cidade Feminista' de Leslie Kern.

Através de sessões participativas que incluíram marchas exploratórias com idosos, o Punt 6 ajudou a Câmara Municipal de Barcelona a realocar os bancos no Eixample, onde 22,1% de seus moradores têm 65 anos ou mais. “A cada 150 metros no mínimo deveria haver um banco, sem eles é difícil para os idosos ousar sair, porque eles têm que parar para descansar. Além disso, são um elemento de socialização”, diz Valdivia, que lembra que no centro de Madrid (Puerta del Sol) não existe um único banco. "Não é comercialmente interessante, porque ficar sentado acaba com o consumo", explica.

A praça é outro símbolo de coesão social. O problema: “A maioria não é inclusiva; costumam estar cheios de crianças jogando bola”, alerta Saldaña. Foi o caso do Plaza Baró, em Santa Coloma de Gramenet (Barcelona), antes da sua remodelação em 2019 em que foi tida em conta a opinião de rapazes e raparigas entre os 6 e os 12 anos. “Aplicar valores como corresponsabilidade, respeito à diversidade e igualdade de gênero no processo participativo permitiu criar uma praça diversa, alegre e colorida onde as pessoas também podem andar de skate, andar de bicicleta, correr e escalar”, Saldana argumenta. Vários países, como Argentina e Grécia, usam o guia de diagnóstico e intervenção sensível ao gênero da Equal Saree para pátios. “Democratiza o uso, aumenta a interação e reduz o conflito e segregação de gênero nos jogos”, explica Saldaña.

cidades feministas

A Equal Saree defende que o urbanismo é uma ferramenta fundamental para a democratização do uso das cidades.

O ecofeminismo arquitetônico também nos incita a aproveitar os espaços: abrir, por exemplo, pátios escolares para que os vizinhos possam apreciá-los fora do horário escolar, uma iniciativa da Câmara Municipal de Barcelona. Ao contrário do desenvolvimentismo feroz que prevaleceu nas cidades nas últimas décadas, o feminismo urbano está comprometido em reutilizar e melhorar. Pontevedra também fechou várias ruas ao trânsito nos últimos meses para que as escolas possam usá-las como extensão de seus pátios.

“A percepção de segurança não depende apenas da iluminação e sinalização ideais. Também passa por um mix de usos que garante que as áreas sejam utilizadas praticamente o dia todo”, diz Muxí. A diversificação das atividades não só nos permite caminhar confortavelmente; as ruas ganham vida com vizinhos que se cumprimentam, se ajudam e passeiam por trás das vitrines, e com lojistas que conhecem as pessoas do bairro. “Em entrevista, uma arquiteta contou que quando estava grávida nos anos 70 voltava para casa depois de trabalhar de madrugada no Ensanche de Barcelona fracamente iluminada quando percebeu que estava sendo seguida. Ele foi salvo por um lugar onde nunca teria pensado em se abrigar: um bar de coquetéis. Até as atividades que não gostamos são necessárias”, diz Muxí.

Leslie Kern, autora do ensaio The Feminist City, define-se como uma "geógrafa feminista". "Analiso o espaço vendo como nossas ideias sobre gênero e poder o condicionaram", diz ela.Um dos fenômenos que mais a preocupa é a gentrificação. “Atinge especialmente as mulheres, expulsando-as de seus bairros e deslocando-as para um subúrbio onde quase não há serviços ou transporte público. Isso porque eles estão em uma situação mais precária: há mais mães solteiras do que pais solteiros, ganham menos e alugam mais”. Razões de Kern.

O sonho americano – a casa isolada monofuncional – nos confinou e nos distanciou da rua, instrumento chave para a socialização. “Esse modelo foi imposto na Espanha na década de 1960 e causou muitos danos. Na Catalunha, por exemplo, 10% da população vive em situação de dispersão territorial. São áreas onde não há interação entre o interior e o exterior, e onde o carro é obrigatório”, acrescenta o especialista.

Torre Agbar

Torre AGBAR (Barcelona)

A cidade de 15 minutos, assente na proximidade, luta contra esta compartimentação e propõe-se deslocar como numa cidade: serviços básicos - trabalho, escola, saúde, cultura, lazer e lojas – estão a menos de 15 minutos a pé ou de bicicleta de casa, modelo promovido em Paris antes da Covid-19 por sua prefeita, Anne Hidalgo. “É uma proposta que já existe nos escritos de Jane Jacobs. Parece que teve que ser endossado por um homem –Carlos Moreno, diretor científico e professor da Universidade Sorbonne– para ser validado”, Notas muxi.

A COVID-19 mostrou a urgência de adotar soluções urbanas desse tipo e de copiar modelos como o de Viena, com um escritório de Mulheres no Urbanismo (e com bairros como Aspern, onde as ruas têm nomes de mulheres) ou da Holanda e do VAC, os comitês consultivos das mulheres holandesas para a construção de moradias, nascidos após a Segunda Guerra Mundial (hoje são cerca de 200) e que tornaram os bairros mais habitáveis e igualitários, dotando-os de centros comunitários, creches, espaços para idosos e parques. Em Berlim e Londres também ganham espaço para o pedestre.

"E na América Latina temos o exemplo de Montevidéu, com a feminista Silvana Pissano à frente do Desenvolvimento Urbano da Intendência", citar Valdivia. Outro assunto pendente: tornar visíveis as tarefas de cuidado. "Eles são essenciais; sem eles, todos morremos”, alerta Muxí. O trabalho dos profissionais de saúde tem sido reconhecido pública e institucionalmente, mas e na esfera privada? “A falsa divisão entre o público e o privado, a divisão sexual do trabalho, aumentou devido à pandemia”, explica Saldaña.

cidades feministas

O Peru é outro dos países analisados pelo projeto Kitchenless.

As mulheres gastam 18 horas a mais por semana em trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados do que os homens, de acordo com a OCDE. A diferença cai para onze horas no sul da Europa, seis nos países anglo-saxões e 3,5 nos países nórdicos. Segundo a ONU, as contribuições não remuneradas das mulheres para a saúde equivalem a 2,35% do PIB global, ou seja, para 1,5 bilhão de dólares; se forem consideradas as contribuições para outros cuidados, o valor sobe para 11 bilhões de dólares.

“As mulheres contribuem com uma contrapartida não monetária para cada ponto do PIB investido pelo Estado. Por exemplo, se você tem uma escola pública, alguém tem que levar a menina para a escola, procurá-la, trazê-la, ajudá-la com a lição de casa. E se você levar a criança ao médico, alguém tem que administrar o remédio, medir a temperatura... Atividades que recaem exclusiva ou principalmente sobre as mulheres. O urbanismo deve facilitá-los e reconhecê-los por meio de regulamentações, transferências e serviços”. afirma Juliana Martinez Franzoni, professora da Universidade da Costa Rica.

A visão de Anna Puigjaner de casas sem cozinha, com espaços comuns e serviços compartilhados a levou a estudar várias dessas estruturas ao redor do mundo com uma bolsa da Universidade de Harvard. “Eles supõem uma crítica ao modelo de submissão da mulher. Eles já existiam antes de 2008, mas a crise os multiplicou”, diz o arquiteto. O também autor do projeto Kitchenless contabilizou 2.384 em Lima –“mas certamente há mais, continuamos mapeando”–, 614 no México –510 administrados pelo governo–, e cerca de 500 em Tóquio.

cidades feministas

Retrato de Anna Puigjaner.

“Os peruanos são os mais antigos; Eles surgiram no final dos anos 1970 como resultado da depressão econômica. As mulheres se organizaram para cozinhar juntas nesses espaços comunitários dos bairros e distribuir comida grátis para os mais necessitados; aos demais, hoje cobram cerca de cinco soles por cardápio. É uma ferramenta de empoderamento feminino”, descreve Puigjaner. Aumentam o bem-estar e reduzem as taxas de pobreza. Eles também pacificam e desativam o mercado de drogas.

O México importou e regularizou o modelo. “Seus espaços de pelo menos 30 metros quadrados devem abastecer mais de cem pessoas. Eles são autogeridos, mas uma assistente social verifica seu funcionamento uma vez por semana”, detalha o arquiteto. O menu de almoço custa 80 pesos e é baseado em uma alimentação saudável. No Japão são livres e crescem como cogumelos. “Os vizinhos doam a comida. Eles respondem à solidão e fortalecem a estrutura social; Eles são usados por muitas crianças entre 3 e 13 anos e pessoas mais velhas”. Como solução para o parque habitacional conservador, Puigjaner também propõe casas hierárquicas onde todos os cômodos têm a mesma medida.

As cidades são ecossistemas multifuncionais e, como o favo de mel de uma abelha, oferecem soluções se vistas com respeito, são uma fonte inesgotável de sabedoria que nos permite questionar nossas estruturas e avançar como civilização. Vamos viajar num futuro próximo para conhecer cada cantinho dessas cidades feministas?

***Este relatório foi publicado no *número 144 da revista Condé Nast Traveler (primavera 2021) . Assine a edição impressa (€18,00, assinatura anual, através do telefone 902 53 55 57 ou do nosso site). A edição de abril da Condé Nast Traveler está disponível em sua versão digital para curtir no seu dispositivo preferido

Consulte Mais informação