O turista-residente: além do turista e do nômade digital

Anonim

Julia Roberts em Comer Rezar Amar

Aquele momento em que você vive a metamorfose e passa de turista a morador

Ela existe há muito tempo, embora quase nenhuma letra tenha sido dedicada a ela: trata-se de a figura do turista-residente-itinerante. É assim que ele se define o arquiteto madrileno Pablo Carballal em seu livro Turista ou residente (Nota de rodapé, 2020) para explicar o período de quatro anos em que habitou as cidades de Nova York, Berlim, Roma e Londres, encadeando trabalhos em vários estúdios de arquitetura.

Ao falar do conceito de turista-residente, é aconselhável evitar confusão com outro tipo de turismo de raiz semelhante: a do “turismo residencial” de migrantes residenciais não laborais de origem estrangeira (por exemplo, o que acontece nas regiões costeiras mediterrânicas). Esse turismo, como explica o sociólogo Alexandre Mantecon, é o responsável por transformar essas regiões "através da construção em larga escala de empreendimentos habitacionais para consumo turístico."

O tipo de turismo residencial de que Carballal fala em seu livro é muito diferente daquele dos alemães vermelho-caranguejo que habitam sazonalmente o Mediterrâneo. Escrito e editado em formato de caderno Moleskine, Turista ou residente é um pequeno diário de viagem no qual são recolhidas parte das notas que o autor escreveu durante os seus quatro anos de itinerância residencial, que repousam sobre um eixo comum: sua metamorfose de turista a residente.

Para Carballal, essa metamorfose é uma questão de pulso. Relembrando sua estada em Roma, o autor explica no início do livro que "depois dos nervos dos primeiros meses, meu pulso alcançou o da cidade e minha receptividade estava voltada para os rumos do residente que eu começava a ser".

Desta forma, e continuando com o símile precordial, poderia estabelecer-se uma escala em que o turismo em uso seria do tipo taquicárdico, atropelado, mais atento ao número de lugares visitados; S a do turista-residente estaria mais próxima da bradicardia silenciosa do conhecido possuidor do tempo e, sobretudo, a convicção de que a qualidade de se visitar uma cidade não é diretamente proporcional ao número de lugares visitados.

Perdendo a cena do filme do Norte

Faça casa. Encontre elementos de um lugar para personalizar a experiência

Faça casa. Essa é a principal nuance diferenciadora entre as duas formas de percorrer uma cidade. No início de sua escrita, Carballal fala sobre o livro Totem de Tóquio –um guia alternativo para visitar Tóquio que o autor descobriu durante sua visita ao Japão–, e um conceito mencionado no referido guia: a dos totens ou eletrodomésticos. Estes são elementos de um lugar que podem ajudar a personalizar a experiência dele, pequenas "âncoras" (visuais, experienciais...) que cada pessoa, a partir da sua individualidade, pode fazer com o novo espaço visitado.

Esses totens, que são descobertos espontaneamente à medida que a pessoa prolonga sua permanência, são os que fazem com que uma cidade deixe de ser a cópia repetida vivida por todos os turistas para ser A cidade vivida em plena autenticidade, algo semelhante à "aura" que o filósofo alemão Walter Benjamin descreveu em 1936.

Benjamin, em seu ensaio A obra de arte no momento de sua reprodutibilidade técnica fala da aura de um objeto –por exemplo, uma obra de arte– como aquela emoção que surge da experiência singular do indivíduo com o referido objeto em sua versão original, Este fato não ocorre quando é feito diante da cópia reproduzida do mesmo.

Dessa forma, e com a permissão de Benjamin (o autor alemão considerava as cidades como um elemento da Modernidade que impedia a possibilidade dessa experiência singular), poderíamos dizer que o ritmo do turista taquicárdico não facilitaria o aparecimento da aura da cidade, algo que aconteceria no caso do turista-residente.

Ao longo de seu diário, Carballal dá pistas sobre quais eram seus pontos de ancoragem nas cidades que visitou: "meu cartão de locadora na carteira e minha bolsa de raquete no ombro podem abrir aquelas portas de casa que os passaportes nos controles do aeroporto não contemplam", explica o autor, que também encontrou totens em os cafés de Roma, a fabricação de alter egos "fantoches de si mesmo para brincar com a ideia de quem você poderia ser" ou experiências linguísticas, como alemão, onde "toda conversa é uma sucessão de thrillers psicológicos com uma audiência silenciosa" porque "como o verbo vem sempre no final, ninguém sabe para onde uma frase leva até que ela termine".

Portas de casa, experiências totêmicas, pontos de ancoragem... Todo esse conjunto de metáforas contém uma realidade única que Glória Gil, responsável pela edição e comunicação do Editorial Pie de Página, caiu em uma conversa realizada através do Twitter: "Devo te dizer uma coisa? Eu li de uma perspectiva onde cidade era equivalente a pessoa." E é que, de fato, Nova York, Berlim, Roma e Londres não aparecem apenas como lugares para se viver, mas personagens com quem dialogar, interagir, aprender e, em alguns casos, lutar.

Ao contrário do turista habitual, que atravessa as cidades-museu como um autômato, inerte; o turista-residente tropeça, acaricia, se esfrega, se coça com seus ângulos e vértices.

Cena do filme Perdendo o Oriente

O turista-morador tropeça, acaricia, se esfrega, se coça com os ângulos e vértices da cidade

Isso é percebido dentro do livro em fragmentos em que o autor explica que a cidade deixa de ser uma entidade para se tornar uma pessoa com voz própria, do "imperativo inevitável" de ceder em Berlim à "realidade líquida" da mesma na cidade de Roma que "deves tratar como tal para não romper a harmonia da cidade, que se alimenta de falhas consentidas" .

Como um viciado que não sabe definir a origem de seu desejo, Carballal explica que nasceram as contínuas mudanças de residência de uma cidade para outra de prazer por um "raro desenraizamento que consistia em vagar pelo mundo estabelecendo sucessivas vidas domésticas".

Esse vício, que pode ser o mesmo que acontece com os nômades digitais – cuja frequência cardíaca fica a meio caminho entre a taquicardia do turista e a bradicardia do morador – pode ter sua origem em uma espécie de síndrome de Peter Pan em uma versão itinerante. Isso seria evidenciado em pequenos detalhes como "a natureza iniciática dos prazeres das palavras recém-incorporadas" que "fazem parte do mesmo tipo de diversão que envolve a infância.

Dessa forma, como explica Carballal, "Parar de se alegrar com coisas como pedir um evidenziatore -marcador em italiano- anuncia aquele momento trágico em que se é despojado de sua ternura e se entrega a um fluxo em que o prazer se transforma em diligência, assim como um organismo pré-adolescente sofre mutação para enfrentar a vida adulta".

A partir deste ponto de vista, a mudança de cidade parece um novo nascimento, uma nova oportunidade de viver a "infância" do turista que está se transformando em morador, para criar novos anexos e vencer o desafio de decifrar as características da nova cidade-pessoa.

O limite de tempo em que se decide redefinir e renascer em uma nova cidade é, segundo Carballal "a medida de um ano inteiro" ou "medida Erasmus" que permite viver um ciclo completo de estações que "permite acariciar a ideia de mais do mesmo", apesar de, como ele próprio confessa no seu livro, a fórmula de mais do mesmo ser a "comida autêntica que nutre o espírito residente".

Chegar, olhar, dialogar, questionar a cidade. Aproveite e, também, sofra. Viva como qualquer outro cidadão. Batendo em suas paredes e sendo acariciado por suas calçadas. Deixe-se fascinar por ruelas insípidas e contemple os grandes monumentos com o olhar bovino de quem observa um poste ou um caixote do lixo. Esse é o fluxo de eventos que marcam o pulso de um turista que está se transformando em morador. Até que chegue a hora de um novo recomeço ou, como no caso de Carballal após sua estadia em Londres e seu retorno a Madri, o fim definitivo dos ciclos de morte e ressurreição itinerante.

Capa de livro para turistas ou residentes de Pablo Carballal

E se falarmos do turista-residente-itinerante por motivos de trabalho?

Após a experiência, as pessoas-cidades permanecem, embora, como explica o autor, "para aqueles de nós que já foram romanos, nenhum café tem um sabor tão bom quanto deveria". As memórias permanecem os lugares anteriormente habitados oferecem a oportunidade de fazer um turismo nostálgico ao retornar por suas ruas.

Mas são apenas isso: nostalgia, porque as sensações que se teve como habitante –a aura– só são perceptíveis quando acompanhadas pelo ritmo lento, bradicárdico, de ter se transformado, pouco a pouco, quase sem saber, de turista em morador.

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