A viagem ao animal é breve. Assim o expressou o pintor Francis Bacon em suas grandes telas. Antes, outros, desde tempos remotos, eles moldaram o animal que guarda o coração humano. Os egípcios representavam deuses em corpos com cabeças de íbis, ou crocodilo, ou falcão, ou leoa.
para os gregos o que não era humano já era monstruoso, como o Minotauro, encerrado em seu labirinto, diante do qual hoje não podemos evitar um surto de ternura. A idade média seguia a tradição que identificava o animal com o vício, instinto básico, pecado. Assim Bosch encheu suas obras de seres dos quais bichos estranhos. Habitam espaços infernais, condenados a sofrer por sua natureza.
‘Francis Bacon: Man and Beast’, Royal Academy of Arts, Londres (29 de janeiro a 17 de abril de 2022).
FRANCIS BACON: HOMEM E BESTA
Na exposição O Homem e a Fera verificamos que, para Francis Bacon, não havia distância entre os dois. O artista cresceu na visão crua de Rembrandt e Goya, e nela recriou a formas orgânicas dos surrealistas e de Picasso. Ele ficou dentro. Suas obras são perturbadoras porque eles olham para dentro e mostrar o que não queremos ver.
Seu pai, soldado e criador de cavalos, o expulsou de casa aos 16 anos depois de descobrir sua homossexualidade e sua predileção pelo travestismo. Ele o enviou para Berlim com um amigo da família com o objetivo de torná-lo um homem. Francisco o seduziu e ele desfrutou da liberdade que a cidade oferecia na década de 1920. Ele viajou muitas vezes para Paris e, finalmente, se estabeleceu em Londres onde se dedicou à decoração.
Em seu amor pelo jogo, ele até instalou uma roleta ilegal em seu porão. Ele passava as noites pulando de bar em bar no Soho. A partir da década de 1940, junto com Lucien Freud, frequentou a Sala da Colônia, de propriedade de sua amiga Muriel Blecher, que a pagava para trazer clientes. Ocupava sempre o mesmo lugar, num dos cantos. De acordo com seus conhecidos, ele era generoso e víbora, inteligência afiada.
Francis Bacon, Estudo para Chimpanzé, 1957. Óleo e pastel sobre tela, 152,4 x 117 cm. Coleção Peggy Guggenheim, Veneza. Fundação Solomon R. Guggenheim, Nova York. Foto: David Heald (NYC)
UMA VIAGEM PARA DENTRO
Ele afirmou que demorou um pouco para se envolver com a pintura porque não estava interessado em representar o que estava ao seu redor. Sua jornada o dirigiu para o interior. Os excessos alcoólicos e sua propensão a relacionamentos tortuosos, marcados pelo masoquismo, formaram um universo fechado habitado por animais e personagens que são mais carne do que pele.
Foi baseado em recortes que ele pendurou em seu escritório. As primeiras investigações sobre o movimento na fotografia, imagens de uma viagem à África do Sul, uma cena de um filme de vanguarda em que uma mulher grita ou máscara mortuária do poeta William Blake, eles emergem de novo e de novo em suas obras.
Após seu acordo com a Galeria Marlborough, que pagou por suas peças com base em seu tamanho, trípticos se multiplicam e sua extensão torna-se monumental.
Francis Bacon, Cabeça VI, 1949. Óleo sobre tela, 91,4 x 76,2 cm. Arts Council Collection, Southbank Centre, Londres.
ONDE O HOMEM TERMINA E O ANIMAL COMEÇA
Sua obra mais famosa, uma versão do Retrato do Papa Inocêncio X por Velázquez, pega um personagem cujo poder beira o divino, o tranca em uma gaiola e o priva de sua humanidade com um grito, que, ao contrário do de Munch, é apenas uma boca. Na boca acaba o homem e começa o animal, afirmou Bacon.
Para o artista, o macaco representava a fusão das duas naturezas. Se no homem ele buscou a animalidade, transferiu sua solidão para o animal. Na exposição da Royal Academy, o personagem mais amigável é um babuíno.
nos anos sessenta conheceu George Dyer em um pub. Ele era jovem, do bairro operário do East End, e tinha um histórico intermitente de furtos em lojas. Bacon, que havia abraçado a submissão consciente em seus relacionamentos, ele se tornou um protetor de Dyer, a quem ele percebeu como um ser vulnerável.
Francis Bacon, Second Version of Triptych 1944, 1988. 'Francis Bacon: Man and Beast', Royal Academy of Arts, Londres (29 de janeiro a 17 de abril de 2022).
Por uma década Dyer ocupou o centro do palco em sua série. Bacon fez numerosos estudos de seu rosto, em que aparece representado com proximidade e certa ternura. Se o retrato foi o gênero em que procurou explorar os limites entre o humano e o inumano, Dyer parece privado dos traços vorazes que mostrava os personagens de sua fase inicial.
A relação se deteriorou no final da década de 1960, quando Bacon se estabeleceu como expoente da alta cultura. Reivindicado nos círculos artísticos apesar de suas peculiaridades, Dyer foi rebaixado e mergulhou em um violento alcoolismo. Em 1971, em Paris, na noite anterior à abertura de uma retrospectiva do Bacon no Grande Palácio, se suicidou com uma combinação de álcool e barbitúricos.
Dyer continuou presente na obra de Bacon após sua morte. Nos Trípticos Negros representa a sequência do suicídio de seu amante.
Francis Bacon, Triptych agosto 1972, 1972. 'Francis Bacon: Man and Beast', Royal Academy of Arts, Londres (29 de janeiro a 17 de abril de 2022).
ENTRE DEMÔNIOS
O artista ressurgiu de uma um tempo que ele mesmo definiu como “demônios, desastre e perda” quando conheceu o espanhol José Capello em uma festa em Londres, a quem superou em mais de 40 anos. A relação se consolidou em viagens à Itália e Espanha. Ele foi muitas vezes a Madrid, onde teve a oportunidade de revisitar dois de seus referentes: Velázquez e Goya, no Museu do Prado. Ele pintou seu último trabalho em 1991.
Desde então, a posição de Francis Bacon como um dos grandes mestres do século XX não parou de crescer. Em 2013, 3 estudos de Lucian Freud Atingiu US$ 142,4 milhões na Christie's New York. o maior preço em leilão até então, só superado em 2017 pelo Salvator Mundi de Leonardo.