Azulejos, cafés e fado: um guia para revisitar os três essenciais de Portugal

Anonim

Diálogos de Portugal entre a palavra e o muro

A Galeria de Artes do Palácio Fronteira é decorada com azulejos no estilo della Robia

Carmo Rebelo de Andrade canta e o tempo pára. A sua voz transparente, jovem, apaixonada e redonda enche a sala principal do restaurante Mesa de Frades, enverniza os azulejos setecentistas que revestem as paredes e acaricia a alma do público. Um público, sem dúvida, sortudo. Porque é quarta-feira e, como todas as semanas, ela é a dona da noite, Carminho, talvez a mais conhecida das vozes que moldaram o renascimento do fado nos últimos anos. Mas também porque o palco não é um dos muitos que Lisboa oferece para ouvir aquele ritmo nostálgico, cadenciado e com um ponto trágico que é sinónimo de Portugal. A Mesa de Frades, localizada no bairro de Alfama, foi em tempos uma antiga capela, o que explica tanto o seu nome (frades significa monges) como aquela decoração azulejar que cria uma atmosfera única e serve para relacionar duas das grandes marcas da identidade sertaneja.

Para combinar a terceira, o local deveria ser um café, um daqueles redutos onde os portugueses sempre se sentaram para discutir, ler ou ver as horas passarem. Mas isso é impossível: fados não se cantam nos cafés. Fados, azulejos, cafés... À primeira vista parecem questões muito distantes e diversas, mas em Portugal quase todas as distâncias são curtas. Também neste caso. Os três, por exemplo, reconhecem parte das suas origens naquele vasto universo que os marinheiros lusitanos começaram a desvendar aos olhos europeus a partir do século XV. O Fado nasceu no ambiente portuário de Lisboa , mas em seus acordes se reconhecem os gritos dos escravos africanos, as cadências que chegavam das costas brasileiras, os cantos entoados nos navios que iam e vinham das colônias.

Da mesma forma, a arte do azulejo nutriu-se de motivos trazidos de terras árabes e indianas. Os primeiros botequims (bares antecessores dos cafés do século XIX) surgiram na esteira daqueles que os viajantes iam conhecendo na Turquia, no Egito, em Marselha, em Paris... Os três, igualmente, compartilham a vocação do diálogo, do encontro. Evidente nos cafés, que durante décadas, e sobretudo antes do aparecimento dos meios de comunicação, foram os lugares de informação, e também de formação de correntes literárias, artísticas e até políticas.

Diálogos de Portugal entre a palavra e o muro

Café Senhor Vinho, em Lisboa

Notável nas casas de fado, os santuários onde se exprime toda a profundidade sentimental das letras e todas as vibrações agudas da guitarra portuguesa de doze cordas. Menos perceptível mas igualmente presente nos temas e no exotismo de muitos dos esmaltes que decoram igrejas, palácios, pátios, fachadas e até estações de metro em metade de Portugal.

Embora, claro, cada um – fados, azulejos e cafés – tenha a sua história e o seu percurso particular. "Um viajante experiente chega a qualquer lugar, entra num café, observa-o, examina-o, estuda-o, e já conhece o país onde se encontra: o seu governo, as suas leis, os seus costumes e até a sua religião", escreveu o poeta Almeida Garrett na primeira metade do XIX. Eram os tempos em que esses estabelecimentos começavam a se tornar o centro da vida intelectual em muitas cidades europeias. Local de encontro e encontro das personalidades mais conceituadas da época, em Portugal correram sempre com uma vantagem sobre os outros países vizinhos: a matéria-prima.

Foi no século XVIII, durante o reinado de D. João V, que Francisco de Melo Palheta conseguiu introduzir o café no Brasil. De lá, foi levado para outras colônias do Império: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Timor... garantindo uma produção de grande quantidade e excelente qualidade. O resultado foi uma perfeição sem igual nas técnicas de preparo desta bebida “preta como o inferno, doce como o pecado e quente como o amor”, como a definiu a escritora Vicky Baum. A excelente confeitaria do país completou a combinação perfeita, e assim o século XX viu o crescimento de grandes e suntuosos cafés, com predominância de Art Déco ou Art Nouveau, e decorados com vitrais, murais, esculturas e, claro, azulejos.

Diálogos de Portugal entre a palavra e o muro

Fachada do café A Brasileira (1922) representativo do estilo modernista português.

O fado teria nascido há muito tempo, dizem eles no século XIII, embora o seu primeiro registo documental remonte a 1838 e tenha demorado até ao final do século XIX para obter algum reconhecimento. Esta música triste, melancólica e sofrida andava por aí, mas sobretudo intensamente popular, confinada às tabernas e zonas baixas de Lisboa quando já nos anos 30 do século passado começou a cantar Amália Rodrigues e a história mudou de rumo. Aquela mulher, vendedora de frutas na juventude, tirou o fado do semi-anonimato em que vivia e o colocou em órbita como música internacional. De sua voz irrepetível, suas variantes e sua liturgia começaram a ser conhecidas. Sabendo que havia fados clássicos, tradicionais e abstratos. Esse silêncio é condição sine qua non para começar a cantar; e que é nas casas de fado, e não nos teatros, onde se pode chegar ocasionalmente aquela comunhão exata entre cantor, músicos e público que leva a desfrutar e sofrer cada palavra ...mesmo que você não saiba português.

O azulejo, por fim, é o que mais tempo prolongou sua validade. Há apenas alguns anos passaram-se cinco séculos desde a chegada da primeira amostra de cerâmica vidrada, importada de Sevilha, e desde então nunca deixou de ser utilizada. As modas, os gostos, as técnicas mudaram ao longo do tempo, dos mouros anónimos aos mestres contemporâneos, passando pelos grandes artistas do século XVIII, como António Pereira ou Manuel dos Santos, mas o seu apelo e exigência não conhecem crise.

Algo que os cafés não podem dizer, castigados pela migração gradual dos citadinos do centro para a periferia. Assim sucumbiam autênticas relíquias do gosto pela conversa e pausa. Alguns sob a picareta, como o Monumental, em Lisboa. E outros, de uma forma mais subtil, pressionaram para mudar a sua aparência e os seus serviços, como o Imperial, no Porto, convertido há alguns anos num restaurante de fast food. Mas nem os portugueses esqueceram completamente a sua inclinação para as reuniões sociais nem os cafés assinaram a rendição. Eles continuam lá, agora voltados para o turista, que agradece o prazer de uma bica com uns pastéis de Belém no meio da tarde.

Como o fado nunca desistiu, hoje em pleno ressurgimento graças à árdua tarefa do seu máximo difusor, Carlos do Carmo, e de jovens como Camané, Ana Moura, Cuca Roseta, António Zambujo, a já consagrada Mariza e tantos outros que permeiam a saudade as noites de Lisboa, Porto ou Coimbra. Que resume num verso os sinais da identidade portuguesa. Que te obrigam a esperar antes de tomar o último café do dia. E que às vezes – apenas ocasionalmente – fazem chorar os personagens imaculados que ouvem a música, imóveis, do perfil esmaltado dos azulejos.

Diálogos de Portugal entre a palavra e o muro

Amália Rodrigues, o ícone indiscutível do género

Para mergulhar fundo O Museu Nacional do Azulejo é um dos clássicos a não perder e contém uma valiosa amostra dos frutos de uma técnica e arte tipicamente portuguesa. Os claustros do antigo convento da Madre de Deus albergam hoje o museu da cerâmica, com azulejos expostos tanto no seu conjunto como em exemplares únicos. As mais antigas são muito valiosas, em estilo mudéjar, com superfície áspera e que usam desenhos geométricos em amarelo e azul claro. Há também azulejos simples, azul-escuros, no estilo Delft, produzidos a partir de 1517.

Museu do Fado. Em 1998, este espaço inteiramente dedicado à preservação da música portuguesa por excelência, o fado, abriu as suas portas. Tem uma sala de exposições permanente e uma temporária, um auditório, salas de ensaio e até uma escola para músicos e letristas.

Fado em Lisboa

Clube de Fados. Rua São João da Praça, 94.

Parreirinha de Alfama. Beco do Espírito Santo, 1.

Senhor Vinho. Rua do Meio a Lapa, 18.

Mesa Fras. Rua Dos Remédios, 139-A.

Para a Taverna do Rei. Largo do Chafariz do Interior, 14.

Bacalhau de Molho

Ou Faia

Marques da Sé

cafés em Lisboa

Para Brasileira Rua Garrett, 120 (Chiado).

Nicola Rua 1 de dezembro de 20.

Martinho da Arcada Praça do Comércio, 3.

Confeitaria Nacional Praça da Figueira 18, B-C.

Café Bernard Rua Garrett, 104 (Chiado).

no Porto

Majestosa Rua Santa Catarina, 112.

Para Brasileira Rua de Sá da Bandeira, 75.

Guarany Avenida dos Aliados, 85-89. ·

no resto do país

Café Astória Praça da República, 5. Braga.

Café Santa Cruz Praça 8 de Maio, 18. Coimbra.

azulejos

Estações de São Bento e Pinhão, no Porto.

Convento da Conceição, em Beja.

Igreja de Marvila, em Santarém.

Palácio da Fronteira, em Lisboa.

Capela de São Filipe, em Setúbal.

Palácio Nacional de Sintra.

*Artigo publicado na nossa monografia de abril sobre Portugal.

Consulte Mais informação