Chiloé, a Galiza chilena invadida pelo salmão

Anonim

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Estuário perto de Castro, a capital

A terra ondula, dobra, torce, –como os lençóis de uma cama, ao amanhecer– em um arquipélago no sul do Chile.

"Eram duas cobras monstruosas", diz a tradição mapuche. "Foi um grande movimento telúrico", diz a ciência. E a terra se partiu. O que antes estava ligado ao continente se desintegrou em dezenas de pedaços que formaram ilhas repletas de colinas. Um novo território.

Um novo território chamado 'Chillwe' pelos Mapuche Huilliches e 'Nova Galiza' pelos colonizadores espanhóis –invadida pela saudade–, em meados do século XVI.

Um novo território que é, actualmente, um lugar desejado por viajantes em busca de gastronomia, paisagens e arquitetura única e um espaço de negócios para empresas de salmão que assolam as águas de Chiloé com peixes que nunca deveriam ter conhecido o Oceano Pacífico.

Um novo (já velho) território chamado Chiloé.

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Chiloé, a 'Galiza chilena'

CHILOÉ, AS MUITAS FACES DA GALIZA CHILENA

Quatro quilômetros. Essa é a distância que separa Ilha Grande de Chiloé do resto do país. Mas em três quilômetros o mundo pode mudar drasticamente.

Montanhas, vales, lagos, rios, fiordes, geleiras e vulcões. Esta é a natureza áspera e marcada do sul do Chile. A terra de Chiloé, por outro lado, é muito diferente: tem um complexo de bandoneons.

Sem grandes montanhas –o ponto mais alto do arquipélago chega a 980 metros–, a superfície de Chiloé é composta por colinas sem fim tingidas de verde e cobertas de névoa.

As colinas, o verde e a neblina. Foi isso que levou Martin Ruiz de Gamboa e o resto dos colonos espanhóis a batizar aquele território como 'Nueva Galicia' em 1567, devido à sua semelhança com o território setentrional da Península Ibérica.

Um pedaço do Reino de Castela a milhares de quilômetros de distância. No entanto, esse termo não prosperou. Chiloé, uma derivação do Huilliche “Chillwe”, foi o nome que prevaleceu para o arquipélago, o único território que manteve a Coroa de Castela no sul do Chile após a derrota de Curalaba em 1598 contra os Mapuche.

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Dirigir por Chiloé é como andar de montanha-russa

Dirigir por Chiloé é como andar de montanha-russa. Da cidade de Ancud, no litoral norte da Ilha Grande, até Castro, sua capital, localizada no centro-oeste, a geografia se faz sentir no estômago a cada descida e subida da estrada.

Perto da capital localiza-se grande parte das ilhas que compõem o arquipélago e, por sua vez, a grande maioria das populações de Chiloé. É neles que se pode ler parte da história deste território: nomes como Curaco de Vélez, Dalcahue, Achao, Huillinco, Chonchi ou Vilupulli dão pistas sobre as diferentes comunidades humanas que habitaram a região: espanhóis, Huilliches e Chonos.

Os chonos foram os primeiros povoadores do território de Chiloé, canoa nômades que foram deslocados para o sul da ilha pelo avanço dos Huilliches.

Seu rastro se perdeu há algum tempo e uma das teorias sugere que eles foram diluídos como grupo ao se misturar com outras comunidades. Porém, há um resto dos chonos que ainda hoje permanece como um dos símbolos de identidade de Chiloé: o curanto ao buraco.

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Curaco de Vélez, na região de Los Lagos

Curanto é uma forma de cozinhar que consiste em a criação de um forno subterrâneo. O processo – muito semelhante ao de algumas comunidades polinésias – consiste em pedras de aquecimento em chamas, previamente colocado em um buraco cavado no chão.

Uma vez quente, a comida é introduzida (marisco, peixe, batata...) e tudo é selado com folhas de pangue –uma planta autóctone de aspecto jurássico–, sacos molhados e terra.

ver, sentir, provar um curanto É um dos principais atrativos que atraem centenas de turistas às terras chilotas.

Mas o curanto não é o único emblema das ilhas, existem também: as igrejas de Chiloé Património Mundial. Foi no início da primeira década de 2000 que a Unesco tocou 16 igrejas em Chiloé com sua varinha mágica.

pertencente à chamada 'Escola Chilota de arquitetura em madeira', Estas igrejas foram erguidas como porta-bandeiras dos mais de 400 templos que existem no arquipélago, e tornaram-se um verdadeiro desafio para o viajante ansioso por visitar lugares únicos. Como uma criança que coleciona figurinhas. Ou um adulto que persegue Pokémon.

Diferentes padrões podem ser distinguidos nas igrejas de Chiloé: alguns brilhantes e coloridos, outros mais sóbrios e monocromáticos, mas tudo formado por um esqueleto de madeira que luta para continuar resistindo à chuva (abundante) que cai no arquipélago.

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As igrejas, um dos emblemas da ilha e Património Mundial da UNESCO

Chiloé e madeira são dois termos intimamente ligados e isso pode ser visto nas fachadas de seus edifícios – alguns dos quais são especialmente valiosos, como os da Calle Centenario, em Chonchi – através de outro dos emblemas da ilha: a telha de chilote.

Este azulejo, que pela sua forma escamosa confere às casas um aspecto reptiliano, provém de diversos tipos de madeira, entre os quais o lariço, uma espécie atualmente protegida devido ao seu abate excessivo.

Outro elemento inseparável do arquipélago também vem da madeira: os barcos dos pescadores artesanais de Chilote. Desde os chonos, o mar tem sido um meio de vida e subsistência para os habitantes das ilhas, que tem estado em grave perigo nos últimos tempos devido à um visitante estrangeiro: o salmão.

Eles começaram a chegar nos anos 70 do século 20: empresas dedicadas à aquicultura que viram nas águas do sul do Chile o espaço ideal para a agricultura intensiva –cevada antibiótica– de salmão.

Quarenta anos depois, o país sul-americano está entre os principais produtores dessa espécie. O problema é que O salmão é um animal exótico dos mares chilenos, além de ser um predador voraz.

Castro

Castro, a capital de Chiloé

A relação entre pescadores artesanais e fazendas de salmão sempre foi tensa devido ao impacto que a presença de um peixe invasor carregado de antibióticos e predador da fauna local teve nas águas de Chiloé (já houve vários casos de fugas de salmões, como os quase 700.000 que escaparam em 2018).

Mas o momento de maior tensão ocorreu em 2016, quando vários fatores se juntaram –causa e efeito para alguns, acaso para outros– e o "chilotazo" estourou.

Começou em março de 2016 e conhecido como maré vermelha –invasão de microalgas que ocorre em diferentes partes do mundo e contamina peixes e mariscos–, começou a se espalhar pelas águas do mar de Chilote.

No final de abril inúmeras praias acordaram cheias de peixes mortos. Este fato também afetou as pisciculturas, que registraram 40.000 toneladas de salmão morto. Foi em meio a essa situação que seis fazendas de salmão uma descarga no mar de 9.000 toneladas de peixe em estado de putrefação.

Durante as semanas seguintes, peixes, pássaros e alguns leões marinhos apareceram mortos na costa do mar chileno, transformando aquela maré vermelha na mais severa de todas as que afetaram a área.

As fazendas de salmão culparam o fenômeno 'El Niño'; pescadores às fazendas de salmão e sua exploração massiva da água, acentuada pelo despejo de salmão. O governo declarou a situação uma zona de catástrofe e o povo chilote saiu às ruas para protestar, cortando rotas comerciais por quase duas semanas em um movimento social conhecido como “el chilotazo”.

Este chilotazo, para além da sua importância social, foi uma demonstração de outro dos emblemas do arquipélago: Bravura Chiloé. Amigável, mas franco, educado, mas rebelde, rude, mas bem-humorado.

O mar? A chuva constante? Os tempos de escassez? A origem mapuche e meio galego-espanhola?… Todos eles podem ser motivos para explicar essa bravura de Chiloé.

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Porto de Chonchi

O ORIENTE É VIDA, O OESTE... A OUTRA VIDA

A Ilha Grande de Chiloé pode ser dividida em duas: uma área oriental, profusamente povoada, e uma área ocidental, mais desabitada e selvagem.

É neste último que se encontram os três parques naturais do arquipélago: o Tantauco (o mais difícil de acessar), Parque Nacional de Chiloé S Parque Tepuhueico.

o Tepuhueico Tornou-se, nos últimos tempos – através do Instagram – um dos lugares mais desejados de toda Chiloé. A causa de tudo é o Cais da Alma, localizado perto da cidade de Cucao.

A imagem é inconfundível: um cais sinuoso que se eleva acima da falésia em direção ao horizonte. Acima dele, uma pessoa com ar nostálgico/épico que posa como se fosse seu último dia na Terra.

Na foto parece o lugar mais solitário da ilha, porém, atrás da câmera, uma longa fila de multidões de turistas esperando sua vez –especialmente na alta temporada–.

Soul Dock

O Cais da Alma, perto de Cucao

Mas o Cais da Alma é na verdade uma escultura com profundo simbolismo, uma homenagem à tradição oral de Chiloé. As vozes huilliche dizem que, quando uma pessoa morre, sua alma deve viajar para as falésias de Punta Pirulil e chame o barqueiro Tempilkawe, para que ele possa ser transferido em seu barco de espuma branca para o horizonte, para o além.

À noite, se você ouvir com atenção, poderá ouvir os lamentos das almas entre o quebrar das ondas. Com base nessa lenda, O artista chileno Marcelo Andrés Orellana Rivera construiu uma plataforma em 2005 –meio cais, meia ponte– para o lugar onde Tempilkawe levava as almas suplicantes.

Seu objetivo era criar um espaço de reflexão, onde cada pessoa pudesse se conectar intimamente com a lenda e seu significado. Hoje, esse objetivo é algo muito distante do que realmente acontece, com centenas de pessoas que chegam ao local mal gastando tempo com o cartaz explicativo que narra as intenções do artista – muito menos parando para refletir sobre o horizonte, a vida, o barqueiro e o além.

Da costa oeste, onde o sol se põe e o dia – a vida – termina, à costa leste, onde palpita a energia vital do arquipélago, Chiloé é única em cada uma de suas dobras e curvas.

Seja em suas paisagens cobertas de neblina, seja no temperamento dos marinheiros chilotes, este pedaço do Chile, fragmentado após a batalha titânica entre as serpentes Tentén Vilu e Caicai Vilu, é a coisa mais próxima de uma fábula que um viajante pode encontrar ao percorrer a América do Sul.

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Chiloé: inúmeras colinas tingidas de verde e cobertas de neblina

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