O livro que recupera a 'primavera roubada' da Extremadura numa viagem ilustrada

Anonim

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

As aquarelas de Konrad Laudenbacher acompanham a prosa itinerante de Julio Llamazares.

"Chegamos à Extremadura em 13 de março de 2020 fugindo de uma Madri cada vez mais fantasmagórica." Assim começa o livro recentemente publicado de Julio Llamazares (Vegamián, León, 1955), que quando perguntado se é um viajante espontâneo ou organizado, hesita um pouco: “Meio a meio. Não sei como os outros viajam. Eu sei que você viaja três vezes. Quando é imaginado e planejado, quando é feito e quando é lembrado e escrito. Cada viagem são três viagens que se sucedem no tempo”. No caso do seu novo livro Primavera Extremadura. Notas do natural (Alfaguara), a viagem de que falas surgiu das circunstâncias excepcionais vividas este ano por todos e pelos seus.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Entrada da casa da família onde o escritor estava confinado.

“Às vezes os imprevistos são os mais importantes. Saí de Madrid antes de ser declarado o estado de alarme, para uma casa dos meus sogros na zona rural da Extremadura, pensando que seria por oito ou dez dias. Estivemos lá três meses e o vírus ainda anda por lá”, conta-nos por telefone.

Em março de 2020, dias antes de toda a Espanha ser confinada, Llamazares se estabeleceu com sua família na Sierra de los Lagares, perto de Trujillo. O poeta e escritor, especializado em livros de viagem, autor do Caderno Duero (1999), Atlas da Espanha Imaginária (2015), Viagem de Dom Quixote (2016), A chuva amarela (1988) e O céu de Madrid (2005), entre muitos outros, viveu ali uma primavera trágica e bela, que combina sua prosa leve e poética com as evocativas aquarelas de Konrad Laudenbacher, seu amigo e vizinho.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Retrato do escritor Julio Llamazares.

“Um dos lamentos mais repetidos dos espanhóis durante a quarentena forçada pela pandemia que devastou o planeta desde o início deste sinistro 2020 (ano bissexto, ano sinistro, diz o ditado) é que a primavera lhes foi roubada”, explica o autor na apresentação de seu novo trabalho. Em vez disso, deu-lhe uma primavera fantástica que ele desfrutou do início ao fim, apesar da inquietação e dos dramas que estavam acontecendo ao seu redor, alguns deles estrelando pessoas muito próximas e queridas. E esse contraste, pura representação da vida, é o que ele queria imortalizar nestas páginas.

“O livro surge por acaso. De repente me vi em um lugar fantástico, mas como se estivesse perdendo o mundo e vivendo uma primavera maravilhosa. A primavera na Extremadura é excepcional. Eu sabia, mas eu tinha vivido por um fim de semana, quatro dias, mas não uma temporada inteira do início ao fim. Isso desencadeou o nascimento deste livro.”

Além disso, o escritor não viveu uma primavera qualquer, mas, segundo os próprios locais, o mais chuvoso da época e, portanto, o mais bonito e espetacular mais lembrado. A natureza, preservada da intervenção humana, estava cheio de luz, cores brilhantes e animais em liberdade. A vida, apesar de tudo, consegue romper.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Capa de 'Primavera extremeña', de Julio Llamazares.

Aquarelas de Conrad, um amigo alemão que tem uma casa perto da sua, completaram o trabalho. “Nos víamos no mato, como contrabandistas”, brinca Llamazares. “No meu aniversário me deram uma aquarela dele e daí surgiu a faísca do livro. Tentei fazer o que ele fez, mas com a escrita. Este livro é uma canção para a vida no meio da morte. Vivemos uma pandemia com consequências trágicas e, no momento, imprevisíveis. A natureza seguiu seu curso, explodiu, animais e campos seguiram o seu com mais liberdade do que nunca. O contraste entre a vida que continuou e a morte é o que tentei transmitir. Um pouco como aquarelas, Tentei escrever aquarelas. Anotações através das quais descrevo o que estava acontecendo e o que também me chegava da mídia, do telefone... com a perspectiva da minha história, aquela espécie de nebulosa quase irreal”.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Interior da casa da Extremadura.

VIAJAR É DESCOBRIR

“A vida do escritor tem algo de confinamento por definição. Você passa muitas horas consigo mesmo pensando nas coisas, seja sentado à mesa, caminhando ou viajando, passeando pela cidade. A condição do escritor é a do confinado, que neste caso era um confinamento duplo”, lembra. Llamazares, que sempre passa muitas horas lendo, escrevendo e assistindo filmes. “Ao perder tempo social, sim, me dediquei ainda mais a essas ocupações. Ou, por exemplo, preparar uma refeição com calma, que também é um prazer na vida”.

A maior mudança para ele foi viver uma temporada inteira do ano na linha de frente. “Quando criança morei em uma cidade, até os 12 ou 13 anos. Senti as estações mais diretamente. Na cidade eles são menos percebidos, a menos que você vá a parques, etc. E a poluição luminosa impede você de ver o céu estrelado, você não consegue ouvir bem os pássaros. Uma coisa que foi muito comentada no confinamento é que a cidade estava cheia de pássaros. Não que estivesse cheio, você podia ouvi-los mais porque não havia carros ou pessoas na rua.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Aquarela de Konrad Laudenbacher para 'Primavera extremeña'.

Os pássaros voltaram a ser ouvidos, de fato, e muitas pessoas redescobriram seu desejo de redescobrir a Espanha. “Todas as crises nos fazem repensar muitas coisas. Tanto pessoal quanto familiar ou social. A crise suscita reflexão. A gente repensa as coisas que, às vezes, na vida normal (que não sei se é muito normal ou não) aí a gente deixa de lado. Corremos de um lado para o outro. Não percebemos muitas das coisas que acontecem ao nosso redor ou se a vida que levamos é aquela que gostaríamos de levar.

"Quando há uma crise de qualquer tipo, as pessoas de repente param, forçam e redescobrem coisas que consciente ou inconscientemente deixaram de lado, como o prazer da paisagem, a leitura, o tempo para si, a conversa. Tenho certeza de que esses meses de confinamento já se falaram mais do que em vinte anos de casamento ou coabitação. Tem servido para muitos descobrem a si mesmos e o que têm por perto, que inclui a geografia e o meio ambiente, que sempre deixamos para um momento melhor. E há quem perceba que a vida passa por eles e não conhece o seu próprio país. Sem dúvida, as crises marcam o modo de pensar”.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Llamazares passou três meses nesta casa de família e transformou sua experiência em livro.

Para bem? “Às vezes para melhor e às vezes para pior. A crise também trouxe à tona, por vezes, o pior da condição humana, o homem para si. Como dizia uma música do The Last in Line, de anos atrás, 'quando a pobreza entra pela porta, o amor sai pela janela'. Quando há bem-estar social e econômico, as pessoas são respeitosas e sociáveis. Quando pintam grosseiramente, sai o melhor de muitos... e o pior de outros”, reflete o escritor, que considera que alguns agora viajarão de forma diferente, mas muitos outros continuarão como antes. “Acredito que tudo isso nos mudará, mas ao mesmo tempo estou muito pessimista, porque no final a história é uma engrenagem e assim que chegar a vacina, que esperamos que seja em breve, bem pouco a pouco voltaremos aos nossos velhos hábitos e repetiremos em substância a mesma vida que levávamos”.

Julio Llamazares recupera em 'Primavera extremeña. Notas do natural' a mola roubada

Llamazares tentou escrever como uma aquarela, descrevendo sua experiência como uma nebulosa.

"NUNCA VIAJOU MENOS DO QUE AGORA"

Depende do tipo de viagem, ele planeja mais ou menos, mas nunca demais. “ Eu não gosto de antecipar. Nunca houve menos viagens do que agora que o mundo inteiro viaja, em termos de descobertas. Viajar é descobrir e colocar-se nas mãos do acaso. Tomando uma rota, mas não planejando tanto. Agora acontece que muitos, se vão a algum lugar, a Palermo por exemplo, primeiro vejam na Internet como é Palermo em 3D, o que oferece, como é o hotel, o café da manhã, eles olham a hora... com a qual, no final você diz 'Por que você vai para Palermo?' Embora também seja verdade que as pessoas viajam como podem, há quem não possa ir sem passagem de volta. Sempre recorro à frase do poeta simbolista francês Rimbaud, que dizia que viajante é aquele que parte para partir, que parte sem outro objetivo senão partir, desapegue-se de sua vida cotidiana por um tempo.”

Festival das Cerejeiras de Interesse Turístico Nacional no Vale do Jerte

A cerejeira em flor no Vale do Jerte é uma festa de Interesse Turístico Nacional.

Enquanto chega o momento em que podemos fazê-lo, podemos viajar pelos livros. “A literatura serve para viver mais. E para viver melhor. Mais porque você vive vidas que não corresponderiam a você ou que você não poderia porque sua própria vida tem um tempo limitado. A literatura permite viver a vida de outras pessoas, em outros tempos e lugares, é sonhar acordado. Assim como assistir a um filme. O cinema é uma máquina de sonhos. Na verdade, quando o filme termina e você sai na rua, demora um pouco para se ajustar à realidade, como quando você acorda de um sonho.

"O mesmo acontece com a leitura. Também tem efeito terapêutico, no sentido de que é um bálsamo que cura as feridas da vida. Neste tempo de confinamento muitas pessoas leram mais ou assistiram a mais filmes ou notaram títulos para os quais não tinham tempo antes. Literatura é tempo, tempo que eles te dão. E tem um efeito consolador. Cura as feridas da vida. Tanto o escritor quanto o leitor.

Consulte Mais informação